20 de jan. de 2012

GUINEFORT, O GALGO SANTO


Nas suas missões, São Roque e São Cristóvão contaram com a ajuda de cães fiéis, que são mencionados nos textos sagrados. Mas a Igreja nunca reconheceu nenhum cão santo.

                                                   Isto aconteceu há muito, muito tempo na região de Dombes, perto de Lyon. Um dia, conta-se, o senhor o castelo de Neuville e sua esposa tiveram de se ausentar por algumas horas, deixando o seu filhinho de poucos meses sozinho no castelo e à guarda do galgo do senhor.E eis que uma serpente se introduz no quarto da criança. Ao ver que o réptil se aproximava do berço, o cão, que estava agachado atrás dele, atacou-a. Então deu-se uma luta violenta, com a serpente silvando e o cão ladrando; o menino, acordado pelo barulho, começou a chorar. No ardor da refrega, a criança caiu para baixo do berço, ficando no entanto em perfeito estado. O cão, coberto de feridas e de sangue, matou a serpente e depois continuou de guarda à criança.

O TRISTE FIM DE UM HERÓI

À última hora da tarde, a ama deu com esta cena e, sem procurar nem ir ver debaixo do berço, desatou a chorar desabaladamente pelo recém-nascido; quando a mãe chegou, fez o mesmo que a ama: pôs-se também a chorar. Nisto, o senhor entra no quarto e, cheio de cólera, mata o cão.
Só mais tarde, ao endireitar o berço, é que encontraram o menino, dormindo tranquilamente no meio da desordem. O senhor do castelo não teve de se esforçar nada para reconstruir o drama e reconhecer a coragem e lealdade do seu fiel cão. Guinefort, seu galgo, foi enterrado com todo o respeito que merecia a sua proeza.
Com o tempo, o castelo caiu em ruína e a Natureza recuperou os seus direitos sobre a propriedade, pois assim trabalha a justiça divina. Os camponeses dos arredores habituaram-se então a ir em peregrinação à campa de Guinefort, cujo acesso se mantinha em segredo. Guinefort fez milagres... e converteu-se em São Guinefort em toda a região.

O CULTO DE SÃO GUINEFORT

O culto de São Guinefort era bastante estranho, como testemunhou Étienne de Bourbon, o frade dominicano que descobriu essas práticas quando era inquisidor na região. Em 1260 fez uma pesquisa, que relata nos seguintes termos:
«Numa aldeia fortificada a uma légua de distância deste lugar, as mulheres, acompanhadas pelos filhos, vão procurar uma velha que lhes ensina a maneira de actuar, fazer oferendas aos demónios e invocá-los, e que as conduz a esse lugar. Quando chegam, oferecem sal e outras coisas; penduram nos ramos os cueiros das crianças e espetam um prego nas árvores que cresceram ali; passam a criança nua por entre os troncos de duas árvores; a mãe, que fica de lado, leva o filho e atira-o nove vezes à velha, que está do outro lado. Enquanto invocam os demónios, conjuram os faunos que há no bosque de Rimite para que, segundo dizem, apanhem a criança enferma e débil que lhes pertence; e, depois de a levarem, devolvê-la-ão gorda e luzidia, sã e salva.
«Feito isto, as mães infanticidas recuperam os seus filhos e põem-nos nus junto da árvore, em cima da palha do berço, e com fogo que levaram acendem de cada lado da cabeça duas velas que medem uma polegada, e fixam-nas sobre o tronco. Depois retiram-se até as velas acabarem de se consumir, de modo a não ouvirem os vagidos das crianças, nem as verem. As velas que se consomem desta maneira queimam por completo e matam várias crianças, segundo se conta. Quando as mães tornam para junto dos seus filhos, se os encontram vivos levam-nos até às águas rápidas de um rio próximo, chamado Chalaronne, onde os mergulham nove vezes; se se salvarem e não morrerem ali mesmo logo a seguir, é porque têm umas vísceras muito resistentes.

Evidentemente, Étienne de Bourbon tentou proibir este estranho culto. Mas, tal como demonstra a apaixonante investigação realizada por Jean-Claude Schmitt e descrita no seu livro Le Saint Lévrier, o culto de Guinefort prolongou-se até muito depois do século XIII. Aparece mencionado em 1632, 1826, 1877, 1886, 1902 e mesmo em 1940, quando uma avó se lembrou de ir ao bosque de Saint-Guinefort para conseguir a cura dos seus netos.

PAVIA, CLUNY, SENS, BRUJAS...

Mais estranhas ainda são as outras onze versões da história de Guinefort que Jean-Claude Schmitt descobriu na Europa Ocidental e que remontam à mesma época. Em Pavia, São Guinefort era humano e estava crivado de setas como São Sebastião; protegia os homens da peste; a sua festa celebra-se a 22 de Agosto. Em1082 foi feita à abadia de Cluny uma doação de uma «fazenda de San Guinifortius». Em 1131, na mesma abadia de Cluny faz-se menção a um altar dedicado a São Guinefort. Em algumas igrejas de Sens, Brujas e outras cidades francesas ainda se celebra o culto de São Guinefort. E até Montargis, famosa pelo seu cão, há no castelo uma capela subterrânea que lhe foi dedicada, não se sabendo se se trata do galgo santo de São Guinefort de Pavia.

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